A educação brasileira sob os efeitos da pandemia: desigualdade social, cidadania negada e a utopia perdida

A educação brasileira sob os efeitos da pandemia: desigualdade social, cidadania negada e a utopia perdida

Lilian Dutra Madeiros, Leia de Silva Santiago, Marcia Paes Leme

Programa de Postgrado en Educación Profesional y Tecnologica – ProfEPT del IFGoiano

 

Nove meses após o surgimento do novo coronavírus e da Covid-19, o mundo tem vivenciado efeitos catastróficos, nos remetendo a outros tempos históricos de pandemias, que assolaram e dizimaram uma grande parcela da população mundial, a exemplo da Peste Negra, Varíola, Cólera, Gripe Espanhola e Gripe Suína (H1N1).  No Brasil, a pandemia provocada pelo novo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade social e seus efeitos na educação brasileira, além de ressaltar a relação entre a educação e a formação cidadã e o valor da utopia aos professores, sobretudo aos de História.

Apesar de a humanidade ter sobrevivido a outras pandemias, mesmo com perdas irreparáveis, o novo coronavírus tem mostrado que a população brasileira não está preparada para lidar com um vírus de tamanha magnitude. Entre o medo da morte e a urgência da sobrevivência, a pandemia continua o seu curso destruidor, atingindo principalmente as camadas mais pobres da população, aquelas que não podem se dar ao luxo de ficar em casa, pois necessitam trabalhar para o sustento da família.

Esse é o reflexo de um país com alta desigualdade social, onde a miséria e a fome assolam uma grande parcela da população. Organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) alertam para as consequências da pandemia nos grupos mais vulneráveis, com destaque para a população jovem do Brasil que corresponde a 47,2 milhões (23% da população do país). Portanto, não estamos falando sobre um vírus democrático, que afeta a todos igualmente, pois nossa sociedade não é igual para todos.

Isso se torna mais perceptível na área da educação. Com o isolamento social, o Ministério da Educação suspendeu, por meio de portarias, as aulas presenciais em todo o país e decretou a implementação de aulas remotas em meios digitais. Essa nova modalidade de educação foi uma forma encontrada pelas escolas de manterem o calendário acadêmico, visando dar sequência aos processos de ensino-aprendizagem. Nesse contexto, o acesso às tecnologias é primordial para que os estudantes consigam acompanhar as atividades escolares. No entanto, uma pesquisa realizada em 2018 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) aponta que 58% dos domicílios brasileiros não possuem computadores e 33% não possuem acesso à internet.

Isso quer dizer que, a cada dez crianças em idade escolar, três estão sem acesso às aulas remotas. Segundo dados do relatório "A acessibilidade do aprendizado remoto", do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), são 463 milhões de crianças e adolescentes, da pré-escola ao ensino médio, que estão excluídas dos processos de ensino-aprendizagem. Desse montante, 72% são de famílias pobres. Assim, o que deveria ser um direito garantido a todos, bem como o direito à alimentação, saúde, moradia, entre tantos outros, tem sido negligenciado por políticas públicas, negando a uma grande parcela dos estudantes brasileiros o direito à plena cidadania.

A relação intrínseca entre educação e cidadania é frisada por Clemente e Juliano, em artigo publicado no ano de 2013, pela revista Tomo. Para os autores, tal fato parece demonstrar a ideia subjacente de que inexiste cidadania sem processos educativos e formativos.  As publicações brasileiras interessadas, em alguma medida, no debate acerca da cidadania parecem reconhecer os problemas nacionais relacionados aos direitos básicos da população, como saúde e educação, os quais impedem o acesso à cidadania para grande parte da população, já apontavam os autores noutros tempos.

O desafio de promover a cidadania por meio da educação se torna ainda mais evidente em um cenário tão caótico de isolamento e de negação de direitos, que se revela nesse momento de pandemia. Se a cidadania diz respeito ao acesso a direitos básicos como a educação, presume-se, então, diante desse cenário, que aqueles que não estão acessando aos processos de ensino-aprendizagem em formato remoto estão, de certa forma, com sua cidadania plena negada, pois a escola, além de ofertar o ensino, oferta também alimentação, espaços de convivência, lazer e interatividade.

Assim como os alunos, os professores e demais profissionais da educação estão tentando sobreviver a esse cenário de pandemia e têm se desdobrado desde a implantação do ensino remoto. Professores de todo o país, tanto da rede pública quanto da rede privada, têm buscado alternativas para que o ensino possa chegar até seus alunos, seja de forma virtual ou por meio de materiais impressos.

Alguns docentes de História, por exemplo, têm aproveitado o cenário para abordar temas relacionados a outras pandemias, como foi o caso da Escola Básica Municipal Fernando Machado, em Cordilheira Alta – SC, que investiu em um projeto com textos, vídeos e podcasts, que seriam o material de suporte para a elaboração de um mapa mental sobre a temática. Outras escolas também têm investido em atividades que reforçam a história e as culturas regionais dos estados, como a Escola Estadual Dr. Fernando Corrêa da Costa, em Aral Moreira, Mato Grosso do Sul, que tem trabalhado a culinária local do estado junto a uma turma do EJA.

A preocupação com o distanciamento social dos alunos fez com que a professora Daniele Silva desenvolvesse, juntamente com outros colegas, um jogo de RPG baseado na cultura indígena, intitulado “Em busca do Amassuru”, que explora a região brasileira em busca de uma cura para o COVID-19. No Rio de Janeiro – RJ, o professor de História Ronaldo dos Santos Faria tem usado o isolamento social para produzir aulas de diversos temas históricos, como as Revoluções Liberais Inglesas, o Absolutismo Monárquico e a Revolução Russa, para disseminar o ensino nas diversas regiões do país. O intuito é levar essa nossa vivência para a internet e beneficiar o maior número de pessoas possível, ainda mais nesse momento, em que as pessoas estão machucando a história, manipulando a história”, afirma o docente, que há mais de 30 anos exerce a profissão.

Esses exemplos mostram que o professor de História tem tido seu papel exaltado no contexto da pandemia. Além de testemunhar o processo e contribuir diretamente na construção da cidadania dos estudantes, ele tem o objetivo de encontrar meios de registrar e arquivar as experiências sociais para as futuras gerações, enfatiza Francisco Santiago Júnior, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História na UFRN.

Entretanto, para além de registrar e arquivar as experiências sociais para as futuras gerações, o professor de História, como descreve Joan Pagès em 2015, em entrevista para a Revista de Historia y Geografía, deve ser um profissional que possibilite que seus alunos construam seu pensamento e tome decisões a partir de uma leitura crítica e reflexiva da realidade. Para o autor, a História, bem como a Geografia, tem o importante papel de nos situar onde estamos, por que estamos e para onde gostaríamos de ir e não para onde a sociedade nos impõe seguir. Nesse caso, cabe a esses profissionais dar aos alunos as ferramentas para que eles possam construir a sua própria caminhada, num processo de construção de sua cidadania.

O que Joan Pagès tantas vezes frisou e repetiu em seus escritos e palestras, a respeito de os professores de História serem intelectuais comprometidos com a formação cidadã e crítica, está bastante difícil de exercer – e isso relatamos por experiência própria – porque os problemas, os medos, as informações desencontradas, as falas do Chefe de Estado e do Ministro da Saúde estão nas ruas e nas portas das casas. Somado a isso, a fome, o desemprego, as dificuldades para pagar o aluguel, a energia, a água e a internet estão dentro das casas, das casas dos nossos alunos e de tantos outros espalhados pelo Brasil, que estão sendo privados dos seus direitos como cidadãos e que, por vezes, nem mesmo conseguem ter a percepção disso.

Ser professor e especificamente ser professor de História nesse momento está praticamente se constituindo uma profissão de risco. Risco de perder o valor da utopia que foi sendo construído na nossa formação como professores. No entanto, é preciso lutar por sua permanência, pois enquanto essa utopia está presente na prática docente, somos capazes de mobilizar nossas sensibilidades em relação aos estudantes, somos capazes de humanizar a História ensinada, de emocionalizá-la, de dar-lhe vida, cores, sons e cheiros, de enxergar nossos alunos como diferentes “batatinhas” e não como um grande purê de batatas, a fim de poder ajudá-los a “ser personas más libres, más autónomas, más sabias, personas más solidarias, ciudadanos y ciudadanas de un mundo global”, como pontua Pagès, em 2017, em entrevista à revista Pasado Abierto.

Claramente, o ano de 2020 se revela como um ano de grandes desafios para a educação no Brasil e no mundo, não só para os estudantes como para os profissionais que estão à frente desses processos. A desigualdade social e a falta de acesso ao ensino remoto comprometem o desenvolvimento cidadão dos estudantes e colocam os professores frente a um desafio quase intransponível nesse momento que, sem dúvida, ficará marcado na história da humanidade. A História, que vem sendo massacrada nos últimos anos por políticas públicas de negação de direitos e que teve seu papel ressaltado atualmente, precisa contar com profissionais que lutem pela utopia perdida e pela promoção do pensamento crítico e reflexivo dos estudantes sobre o contexto social em que estão inseridos.


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